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As gangues da década de 90, em Franca, e a realidade da cultura e violência na periferia

Foto: Divulgação

Anos 90, época de gangues em Franca, década também que dificilmente poderia-se deparar com qualquer muro que não fosse pichado ao longo da cidade. E aqueles que ainda não o foram, eram um convite para os pichadores, com destaque aos francanos Spider e Surso, cuja ousadia inspirava outros pichadores na cidade.

Quanto mais desafiador o local, mais respeito se conquistava, assim era muito comum deparar-se com pichações nas alturas, em lugares de difícil acesso e em bairros nobres, sendo que algumas pichações perduram até hoje em edificações da cidade.

E embora não se tratasse de expressões estéticas dignas de grandes elogios a priori, dado os desafios da empreitada, havia ali uma série de signos não verbais que falavam por si próprios. Era a voz da periferia ressoando, querendo ser ouvida… e vista! E estes jovens foram vistos como assim desejavam, nas matérias dos jornais impressos e televisão, quando foram descobertos. “Eis que os maiores pichadores da cidade foram pegos, Surso e Spider “.

Com base nesta problemática que agora atingia a classe média e alta da cidade, embasada na “teoria das janelas quebradas”, havia uma política de tolerância zero por parte da polícia com relação aos pichadores e quando estes eram pegos pelo Opala da Polícia Militar, não raro tinham seus rostos pichados com as próprias tintas ou eram conduzidos à delegacia para serem fichados.

Mas além da paixão pelo picho, existia entre os pichadores (ou deveria existir) um certo respeito. Não era permitido “atropelar” o picho de outro pichador em qualquer muro, sendo este motivo de sérios desentendimentos entre aqueles que atropelavam. Formavam-se, neste período, as primeiras gangues da cidade, entre elas os Pebas “PBS”, gangue do parque Vicente Leporace composta pelos membros mais considerados da “quebrada”, geralmente jovens mais velhos que influenciavam também gerações de garotos mais jovens da mesma localidade quando estes se utilizavam de nomes aleatórios para suas gangues como “Favela”, “CDA”, “CNB”, “WORLD BREAK”, formando uma verdadeira malha mimética onde falas, vestuário e o comportamento dos mais velhos eram imitados.

Além do surgimento de diversas outras gangues no mesmo período nas regiões periféricas da cidade como os terroristas “TRS” no Parque do Horto, gangues da Vila Formosa, Santa Cruz (Power break), Vila São Sebastião, Parque Progresso, Santa Teresinha, Miramontes, Jardim Aeroporto, City Petrópolis, Ângela Rosa, Brasilândia, dentre muitas outras como a de pichadores que perdura até hoje, Nekrotéryo.

As roupas e a moda

A moda neste meio tinha como inspiração o estilo de vida estadunidense, com base, principalmente, no estilo Hip Hop e o House. Vestia-se, no geral, camisetas de Hockey; do “Pittsburgh Penguins”; “Chicago blackhawks”, calças balão, bonés da NBA de aba reta, sendo o do “Charlotte hornets” um dos mais populares, bobojackos, tênis rebook pumping, puma disk, muitas vezes subtraídos de garotos de classe média no fliperama Pimentinha, do Centro.

Fato este que remete às teorias da anômia de Robert king merton onde temos que: “A anômia é a distância entre a expectativa de sucesso e os meios para alcançar este sucesso, em que o indivíduo poderá se comportar dentre outras maneiras de forma inovadora, quando se socorre de meios ilícitos para atingir o sucesso”. Ora, muitas vezes é o que acontecia quando o jovem da periferia não conseguia atingir o padrão de sucesso fomentando pela mídia, neste caso os tênis caros e roupas de marca.

Mas o diferencial aqui é que grande parte desses jovens pertenciam à classe operária, eram trabalhadores das indústrias que aos finais de semana frequentavam boates como a Contra Disco Club na sexta-feira para as disputas de breackdance ou assistir aos shows de rap do Consciência X Atual, Realidade Cruel, Facção Central. E na Overnight, no sábado, para as rodas de house com Djs, além de outros locais como os passos de música eletrônica nas domingueiras do início de noite no “Som de Cristal”, “Embalos”, “AEC”, que também bebiam de outras fontes rítmicas como o samba, o funk carioca, (funk de corredor) com seu aspecto dionisíaco dos excessos que mais tarde inspiraria o funk Paulista (funk ostentação) e o Rap carregando a antítese, o aspecto Apolíneo da arte, a regularidade, contestação e harmonia das letras.

E embora uma parcela destes jovens se envolvessem em delitos de outra natureza como tráfico de drogas, pequenos furtos e roubos, o que evidenciava mesmo está juventude era a violência entre as gangues. Existia ali uma necessidade de pertencimento por duas razões principais. Dado ao status que gerava pertencer a uma gangue dentro desta subcultura delinquente ou para sua própria proteção. Havia gangues desde as zonas sul, norte, leste e oeste da cidade e o simples fato de se residir numa região inimiga era razão para os conflitos.

Havia paz?

A paz existia apenas durante os eventos, nas rodas de breakdance ou House, naquelas noites de espuma ou apresentações de grupos de rap durante as canções como “Esteja em Paz” do grupo Consciência X Atual. A noite era para diversão, além do fato de que havia seguranças bastante truculentos, como o policial Ravagnani, dispostos a acabar com a bagunça a base de correntadas caso tivessem início dentro do recinto, assim o grande problema era quando as festas terminavam.

A cidade estava sitiada, havia uma guerra civil, mas num outro mundo, distante dos outros eventos da cidade, escondida da opinião pública e dos holofotes, exceto quando um jovem era assassinado, pois partindo da abordagem sociológica de Edwin H. Sutherland e seu legado sobre os crimes de colarinho branco, as classes mais altas tendem a sofrer menos com os estigmas e consequências da criminalização do que os estratos mais baixos da sociedade que sentem muito mais os estigmas sociais e muitas vezes corpóreos, como violência policial, encarceramento, penas mais duras.

Fato experimentado com frequência por estes jovens, onde muitos acabavam internados na Febem de São Paulo ou Ribeirão Preto (Hoje tem o nome de Fundação Casa).

Levando em conta ainda, além de outros fatores, a baixa popularização dos circuitos eletrônicos de vigilância, dada a era analógica e ainda os recentes eventos de violência policial na favela Naval, onde somente após a publicidade dos fatos houveram propostas para tipificação do crime de tortura (antes deste evento a violência policial era um fator constante na trajetória destes jovens), mas a partir deste fato histórico dava-se início a uma série de transformações com relação a dignidade da pessoa Humana.

Mas ainda assim, neste período havia uma certa porosidade nas relações entre policiais e os jovens deste meio, fato evidenciado pela presença destes na segurança dos eventos, algo inconcebível nos dias atuais, em tempos de crime organizado, bem como a participação de policiais em jogos de campeonatos varzeanos, em bolas divididas com muitos destes mesmos garotos e convivendo em moradias populares nas áreas periféricas como o Parque do Horto.

Batalhas das gangues nos ônibus

E assim as batalhas das gangues tinham início na saída dos eventos, com as chuvas de paralelepípedos atiradas contra aqueles que saiam da boate, tiros de revólver calibre 22, garruchas, facadas e muita correria.

Para ir embora, ao final da festa, havia os ônibus corujões tendo como destino diversas regiões da cidade em comum, assim como o ônibus da Contra Disco Clube, com muitos destes confrontos acontecendo dentro dos próprios ônibus ou no caminho a pé de volta para casa, quando por exemplo jovens do Leporace tinham que passar pela vila Formosa para chegarem em casa e então eram aguardados por outros grupos, onde haveria confronto a depender do efetivo ou perseguições, cenas muito parecidas com as do clássico do cinema Cult “The Warriors” ( Os selvagens da noite) filme de 1979 baseado no livro homônimo de Sol yurick sobre as gangues de Nova York.

Havia algumas vezes ainda a unificação de gangues para o fortalecimento contra inimigos em comum, como a “The Best of Nigth”, unificação entre todas as gangues do Leporace, a famosa Aerotião, Santa Cruz e Vila Formosa onde as fusões eram negociadas dentro dos próprios eventos levantando uma bandeira de paz por vezes temporária concedendo o privilégio de um bairro frequentar o outro, para jogos de basquete, treinos de breackdance, manobras de cross, skate e oficinas de grafite.

Mortes

Mas atrás destas histórias esconde-se muito sangue, de mortes violentas por motivos banais, vingadas ao longo dos anos por parentes e amigos formando um ciclo vicioso, emotivo e pouco racional, persistindo em festas de carnaval, shows na Expoagro, casas de amigos. Como um jovem morador do Leporace, que foi morto em uma festa no seu próprio bairro, através do uso de um espeto de carnes utilizado como arma por jovens da Santa Cruz; morte de um jovem da Santa Cruz a facadas na AEC Centro por jovens do Leporace, no show do Rzo; outros a pedradas na Vila imperador, Parque do Horto, Vera Cruz; a tiros em shows de rap, pagode; atiradores em carros efetuando disparos em pagodes de lanchonetes, cujo os nomes não serão expostos, mas as trajetórias e a forma como partiram deixaram um legado de tristeza e saudade para aqueles que os amavam.

Até a chegada do Primeiro Comando da Capital (PCC) na cidade, que decretava a “paz” entre as “quebradas”. Os litígios agora seriam rsolucionados dentro dos tribunais do crime e parafraseando o título de Tropa de Elite 2: o inimigo agora era outro, o Estado e suas forças de segurança, materializadas na Polícia e agentes penitenciários.

E assim, logo a mão de obra de grande parte destes adolescentes passaria a ser explorada pelo tráfico de drogas, transformando a concepção local da subcultura delinquente juvenil, principalmente após a extinção da Febem e a instituição da Fundação Casa, com a humanização e descentralização das medidas socioeducativas, ora agora os adolescentes seriam internados próximos de casa e durante um curto período de tempo se comparado a um adulto, logo, seriam estes jovens os bodes expiatórios ideais para a força de trabalho nas estruturas mais baixas do crime organizado, fato que aliado à chegada dos celulares nos presídios contribuíram para ascensão do PCC no estado de São Paulo, culminando no ápice de demonstração de poder com as mega rebeliões e ataques às forças de segurança no ano de 2006, incluindo a cidade de Franca, durante a transferência de lideranças da organização para presídios federais, somente cessados após uma suposta negociação com o governo do Estado.

Enquanto a velha escola do movimento seguia outro caminho, de contra cultura, valorizando a arte das ruas, formando grupos de rap, oficinas de grafite, esportes, tornando-se professores de dança, mantendo acesa a verdadeira essência do movimento e oportunizando protagonismo às novas gerações.

*Artigo de Gustavo Justino, com pesquisa dos fatos históricos de Luciano Newton (Cubano) e revisão de Lucas Moreira.

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