Durante décadas, Franca foi reconhecida nacionalmente como a capital do calçado. A cidade, que chegou a exportar milhões de pares de sapatos por ano e movimentar uma das mais sólidas cadeias produtivas do país, além de gerar milhares de empregos, hoje vive uma transformação profunda em sua economia e em suas relações de trabalho.
Atualmente, Franca se consolidou no e-commerce, que movimenta mais de R$ 630 milhões anuais, segundo o Instituto de Economia da ACIF. Essa nova forma de empreender, especialmente após a pandemia, trouxe oportunidades de renda, mas também novos desafios. Entre eles, o crescimento da chamada pejotização, um fenômeno que tem redesenhado o mercado local e acendido o alerta de especialistas e trabalhadores.
Na prática, a pejotização ocorre quando empresas deixam de contratar funcionários pelo regime da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e passam a exigir que eles se tornem pessoas jurídicas, abrindo CNPJ para emitir notas fiscais e prestar serviços. Essa forma de contratação, muitas vezes, mascara vínculos empregatícios formais e transfere aos trabalhadores responsabilidades que seriam do empregador.
Em casos assim, o profissional cumpre jornada, recebe ordens, tem remuneração fixa e desempenha suas funções de forma contínua, o que caracteriza uma relação de emprego segundo o artigo 3º da CLT.
O problema é que, ao se transformar em “prestador de serviço”, o trabalhador perde direitos como férias, 13º salário, Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e contribuição previdenciária regular. A prática, considerada uma forma de fraude trabalhista, precariza o vínculo e fragiliza não apenas o empregado, mas todo o sistema de seguridade social.
O tema é tão relevante que chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF). O ministro Gilmar Mendes suspendeu temporariamente todas as ações trabalhistas que discutem a licitude da contratação de pessoas físicas como PJs até que o plenário da Corte julgue o mérito do tema 1.389, que trata da competência da Justiça do Trabalho para julgar esses casos. A decisão afeta milhares de processos em todo o país e poderá redefinir os limites entre liberdade empresarial e fraude nas relações de trabalho.
Para o advogado trabalhista Camilo David Henrique dos Santos, o grande desafio é “encontrar meios para equilibrar o desenvolvimento econômico e a livre iniciativa, sem gerar prejuízos e falta de proteção aos trabalhadores”.
Em Franca, a pejotização ganhou força nos últimos anos. De um lado, empresários reclamam da escassez de mão de obra, dos altos encargos e da dificuldade em manter equipes fixas.
De outro, trabalhadores relatam jornadas longas, acúmulo de funções e salários baixos, além da pressão para aceitar contratos como pessoa jurídica. Após a Reforma Trabalhista, que flexibilizou contratações e abriu espaço para novas modalidades, a pejotização passou a ser vista por muitos empregadores como alternativa para reduzir custos, mas, na prática, tornou-se sinônimo de insegurança para quem depende do emprego.
Essa mudança está redesenhando o perfil econômico da cidade. Com salários baixos e tíquete médio reduzido, muitos trabalhadores têm optado por empreender, vender pela internet e fazer o próprio horário e renda, em vez de atuar sob o regime da pejotização, sem garantias, com carga horária extensa e remuneração limitada.
Segundo a InvestSP, Franca deixou de ser apenas a capital do calçado e passou a figurar entre os polos mais relevantes do e-commerce brasileiro. Hoje, cerca de 21% das empresas locais, mais de 12,8 mil já vendem pela internet. O crescimento foi de 150% no período pós-pandemia, colocando Franca como a segunda cidade do estado de São Paulo e a quinta do país em volume de pedidos enviados pelos Correios. Essa expansão acelerada, embora impulsione a economia, também tem criado relações de trabalho mais voláteis e informais.
Dados do Sindifranca mostram outra face dessa transformação: o sindicato, que já chegou a ter cerca de 400 associados, conta hoje com apenas 126.
O número reflete a redução o enfraquecimento da indústria.
O debate que se impõe é profundo.
Franca, que já foi símbolo de prosperidade industrial, agora se encontra no cruzamento entre inovação e precarização. A pergunta que fica é: de quem é a culpa? Das empresas, dos trabalhadores ou do governo? Talvez a resposta esteja na soma de todos esses fatores e na urgência de repensar o modelo de desenvolvimento que queremos para o futuro.